terça-feira, 15 de setembro de 2020

EMPREENDEDORES NEGROS ENFRENTAM O DESAFIO DE PROVAR SEU VALOR À SOCIEDADE

Eles enfrentam o racismo das mais diversas formas, geralmente sutis, mas persistem e não se calam

Negros e pardos são maioria entre os empreendedores no Brasil. Eles representam em torno de 51%, dos 52 milhões de empreendedores brasileiros. Já entre as empreendedoras, a participação de mulheres negras chega a 60%.  Os dados são da Global Entrepreneurship Monitor (GEM), pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro da Qualidade e Produtividade (IBQP), em parceria com o Sebrae.

Lívia Soares é dona de um Ateliê de alta costura em Varginha, no Sul de Minas. A empresária, de 34 anos, construiu uma carreira respeitável. No currículo, ela soma duas graduações, em moda e marketing, além de um mestrado em moda e têxtil pela USP. Trabalhou com personalidades do ramo da moda, como Ricardo Oliveros e Constanza Pascolato, e ainda carimbou passagens em trabalhos na Semana de Moda de Vancouver, no Canadá; Milão, na Itália; e Paris, na França, onde também trabalhou como desenvolvedora de mercado para uma empresa brasileira do ramo têxtil.

Mesmo com um currículo desse, a empresária relata que, por vezes, ainda enfrenta um desafio primário:  provar que é capaz. “Às vezes, de maneira sutil, percebo nas falas de algumas clientes as perguntas: será que ela entende de moda? É estilista mesmo? Será que ela vai dar conta do serviço?” 

Lívia descobriu desde muito cedo o talento e a carreira que ia seguir: “Desde criança eu customizava os meus uniformes”, lembra.  Em pouco tempo, ela passou a costurar as próprias roupas. Foi quando a mãe sugeriu que Lívia, aos dezoito anos, fizesse um curso de corte e costura. Ela fez e não parou mais.

Hoje, a microempresa ‘Atelier Lívia Soares’ desenvolve vestidos exclusivos de noiva e de festas, de alto padrão, e para isso conta com a parceria de outras profissionais. Segundo Lívia, a filosofia da empresa é transformar sonhos em vestidos. A trajetória de sucesso foi construída com determinação e profissionalismo, mas os episódios de discriminação racial deixaram marcas.

“Já senti o racismo de diversas formas. Percebo que quando uma ideia vem de uma blogueira, dentro do padrão de beleza estipulado pela sociedade, as pessoas normalmente aplaudem. Mas, quando o produto é meu, isso não acontece. Essas pessoas me aceitam como uma costureira, mas não como uma estilista. Duvidam da minha capacidade. Percebo das formas mais sutis, quando, por exemplo, não concordam em pagar o meu preço, mas aceitam pagar para um profissional branco”, relata a empreendedora.

Por causa da pandemia, o ateliê ficou fechado por três meses, mesmo assim, Lívia decidiu não abrir mão das profissionais com quem mantém parceria. Neste período, ela criou produtos como uma linha de laços de cabelo, tendência entre as famosas, e máscaras estilizadas, utilizando tecidos exclusivos e bordados.

Ainda assim, a queda no faturamento foi inevitável. Por causa de festas e casamentos cancelados, a queda chegou a 95% no início da quarentena. Agora, após a reabertura, está em 30% em relação ao período antes da pandemia. Ainda diante dessa situação complicada, a empreendedora conta que não buscou linhas de crédito. “Não foi necessário, porque tínhamos as contas organizadas e uma reserva”.  Mas Lívia segue confiante no seu trabalho e acredita na necessidade de falar sobre o racismo e questionar padrões.

De acordo com a analista do Sebrae Minas, Amanda Cezário, a pesquisa GEM revelou ainda que, de cada 100 brasileiros negros adultos, 40 são empreendedores. Mas, infelizmente, 45% deles abrem seus negócios por necessidade, ou seja, por desemprego ou frustração com o mercado de trabalho. “Por isso, fortalecer a rede de contatos também é um desafio para empreendedores negros, visto que muitas vezes, eles não têm as mesmas chances”, analisa Amanda.

Entusiasmo e preparo
Essas são as ferramentas usadas por Filipe Barbosa, um dos sócios da microempresa ‘Merin Erin Consultoria’, em Varginha. Ele também é um jovem empreendedor, de 25 anos, que aposta no preparo para combater a discriminação, quando ela acontece.  “O racismo está nas pequenas atitudes e tento combater com persistência e estudo”.

O empreendedor é graduado em publicidade e propaganda, tem formação complementar em gestão de projetos e criatividade e também é especialista em vendas. Aliado à formação, ele tem determinação e vontade de fazer diferente.

“Nossa empresa nasceu para defender que é possível criar um capitalismo consciente, que apoia a iniciativa privada e lucrativa, porém sustentável. Apostamos nessa filosofia, oferecendo metodologias ágeis de gestão, que são táticas para gerar inovação com colaboração, por meio de educação, conteúdo e consultorias, para resolver problemas complexos das empresas”, explica o empresário.

O negócio está há apenas 18 meses no mercado, validado por um portfólio com grandes clientes da região. Mas, para ele, o dia a dia de trabalho reserva alguns desafios complexos:

“O racismo no Brasil é sofisticado. Na maioria das empresas que atendo, pouquíssimos negros ocupam cargos de liderança. E na cabeça da maioria das pessoas foi construída uma imagem de que isso é normal. É como se já existisse um lugar pra cada pessoa e o meu não seria ali liderando uma iniciativa. Para quebrar esses padrões, aposto no preparo, prática, livros e nas referências que me deixam pronto pra argumentar e abrir novos espaços. Nem sempre as oportunidades aparecem, mas quando elas surgem, estou preparado”, relata.

A analista do Sebrae Minas comenta a importância de reconhecer as desigualdades, para transformar essa realidade: “Cabe ressaltar o papel de cada um no combate ao preconceito, à intolerância e à desigualdade racial, colaborando para assegurar que todos tenham acesso às oportunidades de crédito e de ocupar cargos de liderança de maneira justa. Apesar dos números desanimadores e de alguns episódios de retrocesso, ano a ano, a conscientização vem aumentando e é fundamental que o empreendedor negro continue buscando a conquista de seus objetivos, por meio do conhecimento, do planejamento e do desenvolvimento da comunidade. Quanto mais histórias de pessoas negras que venceram as barreiras e se destacaram no mercado forem compartilhadas, mais criaremos oportunidades para que outros jovens negros acreditem que é possível. Para isso, podem contar com o apoio do Sebrae”, conclui.

Impacto da pandemia para empreendedores negros
Os empreendedores negros foram mais impactados pela pandemia do coronavírus, entre os donos de pequenos negócios no país. É o que mostra a pesquisa “O impacto da pandemia de coronavírus nos pequenos negócios”, realizada pelo Sebrae em parceria com a Fundação Getúlio Vargas (FGV), entre maio e junho deste ano. De acordo com o levantamento, entre os 7.403 empresários entrevistados, 70% dos negócios conduzidos por negros estão localizados em municípios que tiveram fechamento parcial ou total dos estabelecimentos, enquanto 60% dos negócios liderados por brancos atuam em locais com restrições.

Além disso, 39% dos empreendedores brancos possuem negócios onde houve maior reabertura, ao contrário dos negros, que são apenas 29%. A amostragem também identificou que 46% dos negócios liderados por negros tiveram que interromper temporariamente o funcionamento, enquanto 41% dos negócios mantidos por brancos tiveram interrupção temporária.

A pesquisa revela ainda que os empreendimentos mantidos por negros sofreram mais impacto porque não conseguiram funcionar, principalmente por atenderem em sua maioria (45%) somente de forma presencial. Ao contrário dos 40% dos empreendedores brancos que conseguiram continuar com os negócios, com o auxílio de ferramentas digitais, 32% dos negros fizeram uso desse tipo de recurso, por meio de sites, aplicativos, redes sociais, entre outros.

O estudo identificou ainda que, entre os empreendedores negros, a maior proporção (70%) é de Microempreendedores Individuais (MEI), em sua maioria mais jovem, formado por mulheres e com menor nível de escolaridade em comparação aos brancos.

Além disso, negros e brancos pediram empréstimo em bancos em proporção semelhante, mas os negros tiveram maior recusa (61%), enquanto para os brancos foi de 55%. O valor solicitado pelos negros (R$ 28 mil) foi 26% mais baixo do que o solicitado pelos brancos (R$ 37 mil).

da Agência Sebrae MG de Notícias

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