Docentes da Unicamp apontam fim de pacto social, retrocesso, deterioração do Estado, percepção de desmonte geral e reformas na berlinda
texto Álvaro Kassab e Luiz Sugimoto
fotos Antoninho Perri
edição de imagem Luis Paulo Silva
matéria do Jornal da Unicamp
O economista Eduardo Fagnani, o historiador Luiz Marques, o filósofo Roberto Romano e os cientistas políticos Reginaldo Moraes e Sebastião Velasco e Cruz, todos docentes da Universidade de Campinas (Unicamp), avaliam as consequências da divulgação da lista do ministro Edson Fachin, relator da Operação Lava Jato no Supremo Tribunal Federal (STF). Foram abertos inquéritos contra 8 ministros, 3 governadores, 24 senadores e 40 deputados.
EDUARDO FAGNANI, economista e professor do Instituto de Economia (IE) da Unicamp.
Certamente, a reforma política não pode ser pelo Congresso, não pode passar pelo sistema político. Como governar o país com 30 partidos, em geral não ideológicos, não programáticos, apenas fisiológicos? Como assegurar governabilidade se não com trocas que acabam se transformando em balcão de negócios? Isso perpassa todo o sistema. Ao contrário do que sempre disseram, a corrupção não é privilégio de um partido político, nem do governo federal.
[Sobre os impactos nas reformas, como a da Previdência]. Quero lembrar que estamos em um país que tem déficit de democracia, não é da Previdência – apenas 50 anos de democracia em 500. Faz-se o impeachment da presidente por suposto crime econômico, e assume quem estamos vendo: um conjunto de lideranças, a começar pelo presidente, envolvidas em denúncias gravíssimas de corrupção. A questão que deve ser colocada é: com o golpe parlamentar teve início um programa de governo, sintetizado pela “ponte para o futuro”, que não foi legitimado pelas urnas. Para que, em um ano, sob pretexto de ajuste fiscal, simplesmente destruíssem o pacto social firmado com a Constituição de 1988.
Qual a legitimidade desse governo para fazer essas mudanças? Qual a legitimidade desse Congresso – que tem sob suspeita os presidentes da Câmara e do Senado, 40 deputados e 1/3 dos senadores – para implantar a toque de caixa um projeto liberal ao extremo, que vai aumentar a pobreza e praticamente interditar o futuro do país rumo a um padrão civilizatório? Um cidadão como eu, fica absolutamente à deriva”.
LUIZ MARQUES, historiador e professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.
Isso posto, enquanto Temer continuar instrumental para oestablishment financeiro e o agronegócio, não deve cair. Dilma Rousseff, sobretudo a partir de 2012, fez a degradação da biosfera avançar a passos de gigante. Com o Código Florestal e com sua aliança com Kátia Abreu, cometeu crimes contra a floresta que são, em minha opinião, mais graves, porque mais irreversíveis e mais ameaçadores à vida no planeta, que os crimes de corrupção que ocupam as páginas dos jornais. Cabe a Temer, ‘terminar o trabalho’ iniciado por ela, garantindo os interesses devastadores do agronegócio.
Eis sua pauta:1) asfixia orçamentária do Ministério do Meio Ambiente; 2) impunidade em relação ao desmatamento, que atingiu 7 mil km2 apenas na Amazônia entre agosto de 2015 e julho de 2016; 3) impunidade em relação às invasões das áreas indígenas; 4) impunidade em relação ao assassinato em série de militantes ambientalistas. Segundo a ONG Global Witness, 207 defensores dos direitos humanos, das terras indígenas e das florestas foram assassinados entre 2010 e 2015, um recorde mundial de Dilma. Mas Temer quer quebrar esse recorde, pois apenas em 2016, a Pastoral da Terra recenseou 61 assassinatos do gênero; 5) impunidades em relação aos maus-tratos infligidos aos animais, em relação aos crimes contra a saúde pública pelos frigoríficos e em relação à compra de carne de fazendeiros que desmataram na Amazônia (Operação Carne Fria); 6) nova pauta legislativa visando processos de licenciamento ambiental mais expeditivos, inclusive com asfaltamento de estradas como a BR-319 (Manaus-Porto Velho), com impactos tremendos sobre a floresta; e 7) recategorização de áreas protegidas, colocando em risco 1 milhão de hectares de terras no oeste do Pará (MP 756/2016 e MP 758/2016) etc.
Essas são as políticas basilares do governo Temer, que diferem das políticas de Dilma apenas quanto ao grau de destrutividade. E é esse o sentido duradouro das ‘reformas’ em que tanto se empenha seu governo, com o apoio tácito ou explícito dos oráculos do “crescimento econômico”, segundo os quais, como afirmou Celso Pastore, Temer está “recolocando a economia nos trilhos”. Quem se mantém informado sobre o agravamento e a aceleração das crises socioambientais em curso sabe bem aonde nos levam esses trilhos”.
REGINALDO MORAES, cientista político e professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.
Contudo, há, sim, pelo menos uma novidade, aquela que a voz popular aponta quando diz que ‘agora é oficial’. Efeitos e repercussões? Dependem de quem controlar a interpretação dos fatos – isto é, de quem controlar a agenda do info-entretenimento que chamamos de mídia. A seguir como está essa coisa, é de se prever que se espalhe uma percepção de desmonte geral. Ou seja, de erosão das principais lideranças políticas e, também, de deslegitimação do conjunto das instituições representativas – executivos, legislativos.
Já existe em curso, também, a desmoralização dos Tribunais de Contas, cada vez mais aparecendo como escritórios que vendem sentenças, para ‘limpar’ negócios ou para remover governantes inconvenientes aos poderes de fato. O cenário de ‘nada se sustenta’ ou ‘está tudo podre’ não pode durar muito tempo. O desmonte do país abre espaço para soluções ‘heroicas’. Já existe quem as proponha. A cadeia de info-entretenimento fomentará esse ‘apelo’ ao salvador da pátria?
Uma outra novidade da lista está numa ausência: não tem ninguém do Judiciário nas caixinhas? O que, até as pedras sabem, é uma piada. Para complicar o cenário, o quadro internacional é também de incerteza ampliada, com a eleição de Donald Trump. Era evidente a sintonia do governo Temer com a candidatura Hillary Clinton. Aparentemente, as negociações para entrega do país estavam mais claras. Já não estão”.
ROBERTO ROMANO, filósofo e professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.
Essa lista vem coroar um processo de descontrole institucional muito grande. Primeiro, o vazamento, pois Fachin não esperava que a lista viesse a público, pensou em um prazo para isso. Mas oEstadão, tendo acesso, já publicou. Isso vem sancionar o vale-tudo. O presidente não pode ser questionado por ter o privilégio do cargo, mas o Ministério inteiro está se liquefazendo, não tem Ministério. Os principais nomes dos ministérios estão implicadíssimos, o que significa a reiteração absoluta da falta de legitimidade e ética, não escapa ninguém, é uma radiografia impiedosa da classe política brasileira.
Além disso, as reações são cínicas, como sempre. Há uma negação dos padrões éticos mínimos de responsabilidade. Paulinho da Força diz que tem prestígio é quem está na lista. É de um cinismo atroz. Deviam estar todos cobertos de cinza para explicar o que fizeram e estão fazendo. Boa parte dos analistas e da mídia está mais preocupada com as reformas, deixando passar coisas que vêm dessa prática perniciosa da compra de votos, com bilhões em emendas para aprovar a reforma da Previdência e outras reformas.
Estamos chegando ao resultado mais catastrófico do modelo politico brasileiro, que é o apodrecimento geral do Estado brasileiro. Não há muita luz após essa situação. Esse passo monstruoso da lista anuncia a derrocada inédita do que sobrou de legitimidade do STF. É o anúncio dos fins dos tempos, do apocalipse. Necessitamos de uma mudança radical, de uma nova Constituição e de um novo modelo de Estado”.
SEBASTIÃO VELASCO E CRUZ, cientista político e professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.
O que nós temos, na verdade, é a confluência de três calendários: 1) o da investigação, que resultará ou não em indiciamentos; 2) o da votação das reformas, como a da Previdência, que são difíceis, porque atentam contra direitos sociais e são muito impopulares; e, por fim, 3) o das eleições gerais de 2018.
O esforço do governo será sem dúvida o de votar o quanto antes as reformas. Alguns membros de sua base parlamentar chegam até a cogitar em fechamento de questão, o que soa como um absurdo, porque as cúpulas partidárias estão mergulhadas em denúncias e não têm legitimidade para decidir por sua conta sobre mudanças na Constituição. .
Creio que o andamento das reformas – e suas consequências – está condicionado à mobilização da sociedade na defesa dos direitos ameaçados. Isto pode ter efeito sobre todo o jogo político. Os deputados e os senadores vão pensar muito antes de aprovar as reformas que os indisponham com o eleitorado, já que correm o risco da cassação pelo voto em 2018, perdendo o foro privilegiado.
Isso é importante porque, na ausência deste, eles ficarão sujeitos a processos onde o grau de incerteza é enorme. Na verdade, temos no Brasil um sistema em que a lei vale muito pouco, sobretudo nos últimos três, quatro anos. As leis estão escritas, mas o seu significado é constantemente redefinido pela interpretação livre e “criativa” dos funcionários do Estado encarregados de aplicá-las.
Este fato se transformou num aspecto crucial da crise que vivemos no Brasil. A situação está muito embaralhada, justamente, porque o Judiciário, que deveria ser um elemento decisivo na solução, passou a fazer parte – essencial – do problema”.
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